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CRISE EXTRAORDINÁRIA
Um conto sobre a crise de combustível no Brasil
Tudo começou com a greve dos caminhoneiros. O que parecia apenas mais uma manifestação gerou cenário para uma crise de combustível que afetou grandemente a economia brasileira, com prejuízos estimados, até dia 28 de maio, em mais de 2,9 bilhões de reais.
Em meio ao aumento dos preços, supermercados e farmácias desabastecidos, falta de condução e outras incontáveis perdas comerciais e do setor agropecuário, pessoas entram em desespero e começam a saquear mercados, roubar combustível e estocar comida. Parece até o início de uma história apocalíptica...
Baseado em tais eventos, o conto de Amanda Reznor aplica o extraordinário para questionar os eventos. Mas o que seria mais incrível nessa história - o fantasioso, o inacreditável, ou a desestabilização de um país inteiro por conta de um movimento social em alta combustão?
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CRISE
EXTRAORDINÁRIA
UM CONTO DE
AMANDA
REZNOR
Saulo
respirou o ar salgado de brisa marinha enquanto relaxava a musculatura tensa.
Abriu os olhos castanhos e contemplou, pela última vez, a vegetação rasteira da
Praia Triste que, rebrilhando límpida sob o sol tímido que banhava aquelas
margens de Santa Catarina, para muito longe evocava a melancolia.
No
instante seguinte, Saulo se viu novamente rodeado por quatro sólidas barreiras
de concreto – o hall da escadaria de um prédio comercial. Sem
qualquer surpresa, ele empurrou a pesada porta corta-fogo e atravessou um
corredor de piso polido, chegando à porta de vidro que separava os elevadores
da central de operações.
Reassumiu
seu posto, ao que, mais tranquilo, conseguiu encarar as próximas seis horas de
ofício, sem maiores perturbações que as vozes alteradas do outro lado da linha.
Esse era, basicamente, o cotidiano de Saulo – uma jornada normal de quarenta e
quatro horas semanais em um call center normal, numa dentre tantas
outras ruas paulistanas, num segundo andar de janelas perfeitamente normais,
divisas, mesas, fios e cadeiras, um antro funcional com um lugar especial,
descontente, que o aguardava dia após dia, sem garantia, deslocado no espaço, à
revelia – uma empresa normal para necessidades normais, obrigações ademais e
funcionários bonsais – reduzidos não em escala, mas em potencialidade e
autonomia.
E
era justamente essa falta de controle que Saulo acreditava ter conseguido
driblar com os seus “passeios mágicos” – uma vez ao dia, em geral à hora do
almoço, ele escolhia cuidadosamente um ponto no Google Maps.
Depois, bastava se dirigir a um local vazio, como um banheiro afastado ou as
escadas de emergência, e pronto – lá estava ele, compartilhando de outros ares
e venturas.
Isso
tudo pareceu muito absurdo, a princípio, até mesmo para o próprio Saulo –
conseguir tamanha façanha com um simples direcionamento. Afinal, bastava uma
ordem mental, um ambiente isolado, um fechar e abrir de olhos, e voilà! Ele
quebrava leis da física das quais nem se recordava de ter estudado.
Essa
possibilidade tivera início poucos meses atrás. Numa tarde qualquer, estressado
após prestar atendimento a uma voz envelhecida e um tanto cruel, Saulo foi
lavar o rosto no lavabo e, com os olhos ainda fechados, lembrou-se de uma
viagem de anos antes, quando estivera em Foz do Iguaçu. Ainda com os olhos
fechados, assustou-se ao ouvir a torrente da queda d’água bem ao seu lado,
estremecendo perigosamente ao corajosamente abrir os olhos e constatar que, de
fato, estava em meio à miragem das cascatas.
Pasmo,
esfregou o rosto e, com o receio de ver-se perdido em devaneios sem
precedentes, deu novamente de cara com sua barba arruçada refletida no espelho,
o borbulho eletrizante do call center retornando aos seus ouvidos.
Depois
de algumas semanas de susto e prática, entretanto, aquela descoberta ocasional
foi se transformando em algo tão natural como a própria respiração de Saulo, um
pendor abençoado do qual não mais se imaginaria livre. Desconto na folha por
chegar fora do horário? Nunca mais. Congestionamento enfastiante e gastos com
condução foram desviados para uma grande melhoria na qualidade de vida de
Saulo, de forma que, aos poucos, ele tinha tempo para ser, ver, aprender e
existir.
À
parte desse inesperado evento, Saulo era considerado bastante comum entre os
seus. Excetuando-se a repentina pontualidade, pouco se acrescentara à simples
lista de habilidades do rapaz. Seu cotidiano, embora menos estressante e mais
colorido, continuava basicamente o mesmo. Até aquele final de mês de maio.
Ah,
sim. Aquele mês. A greve dos caminhoneiros, a alta nos preços seguida pela
escassez do combustível, um terror que assolava o país inteiro. É claro que
essa crise demorou a ser sentida por Saulo – porque, de fato, era só
indiretamente que ela o afetava, uma vez que seu ir e vir era agora manejado
tão somente com a força do pensamento.
Mas
ver seus colegas de trabalho entrando em desespero começou, também, por
afetá-lo. Esse efeito foi especialmente acentuado pelas lágrimas de uma amiga
pela qual Saulo nutria grande admiração, e que não conseguiria condução para
buscar seu filho pequeno na escola. Compadecido, ele resolveu tentar o
impensável – pegou a mulher pela mão, levou-a a um canto afastado e, sem mais
nem menos, pediu que a outra fechasse os olhos com força, conseguindo
transportá-la até o local desejado.
A
pressão da culpa que Saulo vinha até então sentindo, pela vantagem que seu dom
lhe conferia acima dos demais, foi, naquele momento, represada pelo sorriso
amarelado da colega atendente. E essa sensação de bem-estar foi gradualmente
solapando a culpa, conforme Saulo foi aumentando as horas extras para ajudar as
tantas pessoas que a amiga lhe indicava, e as tantas outras que por acaso
tomavam conhecimento do seu “milagre”.
Chegou
o momento, contudo, em que Saulo ficou acuado. Era um departamento inteiro
esbravejando e exigindo que ele ajudasse os funcionários em sua locomoção, com
afirmações que variavam entre a mais pura necessidade e o mais puro egoísmo – vai ser apenas um instante, não lhe custaria
nada, eles emprestariam o VR,
não havia ônibus para casa, alguém perderia o emprego, o combustível acabara,
não dormiam direito, eu era seu carona, você tem que ajudar, pense nos meus
filhos! – argumentavam, enquanto o pobre homem se afastava lentamente até o
corredor da saída; e então, sem mais escusas, ele o fez – quando as mãos se
converteram em garras prestes a despregar-lhe os botões da camisa repuxada, ele
desapareceu.
Quando
voltou a respirar, o ar gélido queimou suas narinas como se ele estivesse no
polo norte – e, de fato, ali estava ele – num deserto de gelo e neve e branco.
Em questão de segundos, sua pele avermelhou com o ardor do vento cortante, e
Saulo imediatamente fechou os olhos e começou a projetar sua cama, um tanto suja
e desarrumada, mas não menos acolhedora.
Ele
abraçou o corpo com as mãos, o sorriso esperançoso crescendo na face,
esperando, esperando, as pernas já adormecidas enquanto a nevasca aumentava.
Usou todo o seu estoque energético para focar na direção a seguir, o
travesseiro amarelo, o cobertor axadrezado, sim, ele já via as listras
vermelhas saltando aos olhos, o feltro peludo por baixo dos dedos, o pijama de
flanela acalentando as canelas...
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Manhã
seguinte, tininte, os jornais regurgitavam a reação – era o fim da paralisação
– tudo transitava para a normalidade – escolas, hospitais e comércios
retomariam sua atividade normal. Num call center normal, numa
dentre tantas outras ruas paulistanas, num segundo andar de janelas
perfeitamente normais, divisas, mesas, fios e cadeiras, um só lugar padecia,
descontente, e dia após dia aguardaria, sem garantia, deslocado no espaço, à
revelia, com uma cabine espectral – e anormalmente – vazia.
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Amanda
Reznor é escritora, professora, pesquisadora, gamer, apresentadora do Criador de Mundos na Rádio Geek e mais uma dentre os
milhões de brasileiros afetados pela crise.
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@AmandaReznor
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